Há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura” – Che Guevara
Precisamos
ser cautelosos ao falar de amor. Ainda nós, filósofos, orgulhosos de nosso
intelecto, com a cabeça nas nuvens, temos o pé ainda mais atrás para falar de um
sentimento que hoje parece tão banalizado. Mas se poetas, escritores, músicos,
padres, psicanalistas e toda uma quantidade enorme de pessoas pode falar deste
sentimento, por que não nós? Talvez se falarmos de um amor inadequado, então
sim, cabe a nós falar deste afeto! Exatamente para desafiar o modo de amar atual
que se espera nos tempos de hoje.
Sim,
o amor pode ser assunto de filósofos e de política. É preciso apenas antes
filtrá-lo de todo sentimentalismo barato, todo romantismo enlatado de filmes
americanos. Não queremos o modelo de amor burguês, do casal, do príncipe
encantado e da princesa. Já coube a nós, inclusive, desplatonizar o amor! Tudo porque é preciso reinventar o amor,
torná-lo novamente perigoso! Ainda mais em tempos de indiferença social, em
tempos de medo eesperança tão enraizados em nosso modo de pensar e agir. Se
pensarmos em como uma cidade cria e circula seus afetos, então devemos nos
preocupar, e muito, com o modo que o amor circula e de que forma ele cria
subjetividades.
– Kev OrvidasAs pessoas hoje em dia parecem incapazes de entender o amor como um conceito político, mas é precisamente de um conceito de amor que precisamos para apreender o poder constituinte damultidão” – Negri&Hardt, Multidão, p. 439
Falar
de amor como um afeto (bio)político é encarar o fato de que o amor pode ser
uma ferramenta filosófica de constituição do comum e que gere potência,
aumentando nossa capacidade de afetar e ser afetado. Este conceito pode ser uma
ferramenta poderosa para qualquer devir-revolucionário. O amor existe
primariamente como esta figura externa de referência, ele é a alegria que
reconhece uma causa externa. “Uma alegria acompanhada de uma ideia de uma
causa exterior” (Espinosa, EIII, def. af. 6). Sendo assim, ele reconhece
logo em sua definição a interdependência entre o crescimento da potência e as
relações exteriores que lhe dão suporte para isso. O amor nos faz ver que
crescemos juntos, que estamos no mesmo barco.
Todo ato de amor poderíamos dizer, é um acontecimento ontológico na medida em que assinala uma ruptura com o existente e cria um novo ser” – Negri&Hardt, Bem Estar Comum, p. 205
Para Antonio Negri, o amor constitui, dá consistência, cria novos
caminhos, ele é a abertura do ser para o novo, o constante processo de criação
infinita do ser. Sem amor, não adianta, simplesmente não é possível. Espinosa
fala do ser humano que é mais forte junto que separado e nós vemos isso
claramente quando Espinosa afirma “nada é mais útil ao homem do que o
próprio homem” (Espinosa, EIV, prop 20, esc) e de como uma das virtudes
do homem livre é viver em sociedade. De que serve um amor se ele
não mudar o mundo? De que serve um amor se ele não recriar o mundo? Contra todo
amor possessivo e monopolista, nós propomos uma nova forma de amar, uma que dê
acesso a todos, sem ser privatizado e sem se fechar!
O amor significa precisamente que nossos encontros expansivos e nossas contínuas colaborações nos proporcionam alegria” – Negri&Hardt, Multidão, p. 439
Mas
vivemos tempos de fechamento, medo, ódio, raiva, indignação. Vivemos uma enorme dificuldade em dar vazão para
criações que não sejam rapidamente capturadas pelo mercado ou privatizadas e
colocadas na prateleira do mercado ou atrás de uma vitrine. O perigo está na
forma como os afetos circulam em nossa sociedade. O amor é uma mercadoria a mais
para ser colocada em perfumes e comerciais de televisão! O desejo não se engana,
dizia Espinosa, mas o amor pode assumir a forma mais servil possível, afinal,
não aprendemos inúmeras formas de amar que são corrompidas logo de início?
A família talvez
seja uma das primeiras. Nos ensinaram a colocá-la acima de tudo, amá-los porque
nos momentos de dificuldades apenas eles estariam lá para nos ajudar. Verdade?
Sabemos que a resposta não é tão simples. A família é vista como núcleo mínimo
da constituição social, mas nos esquecem de contar das rupturas internas de cada
família, do quanto elas podem ser intolerantes com qualquer mínimo desvio.
Querer a identidade da família pode ser chamado de “amar ao próximo”. Eis uma
verdade que pode tornar-se um identitarismo limitante e ameaçador. O “próximo”
torna-se “o mesmo” e qualquer desequilíbrio ou disparidade já é logo visto como
anormal, potencialmente perigoso. Quantas famílias não banem a diferença?
Inúmeras! Tudo por causa de uma forma identitária de pensar o amor que não
consegue se articular minimamente com a diferença. Famílias que se encontram
hermeticamente fechadas para o fora.
Sabemos
de como Nietzsche ensinou a amar o distante, não o amor ao próximo,
mas ao distante, à diferença, à alteridade. Esta sim é potente, porque cria,
porque abre novos caminhos. O amor à alteridade, à diferença é o antídoto que
cura contra este amor identitário, fechado, monótono, repetitivo, esterilizado,
que busca a completude e a sublimidade. Não, nos parece pequeno demais nos
encaixar no padrão da família tradicional (ainda mais a brasileira), nós
queremos e sabemos que o amor é mais que isso! E como afeto (bio)político, ele
precisa escapar do apartamento apertado onde papai e mamãe moram. A unidade é na
verdade múltipla, é preciso apenas saber promover os encontros.
Outra
forma de amor e à empresa, à corporação na qual a subjetividade
encontra-se constantemente em perigo de ser capturada. “Vista a camisa da
empresa” é o jeito mais sutil de dizer “trabalhe horas extras sem pedir
nada por isso e nunca, nunca mesmo, deixa de atender as ligações de seu chefe no
celular“. A política da empresa engole cada funcionário, lhes dá um
treinamento e o coloca em um cubículo apertado para que produza. E as palestras
motivacionais no fim do ano? Servem apenas para que os funcionários não pulem do
mais alto andar da empresa, onde provavelmente está a sala do chefe e que, se
nos esforçarmos muito, um dia chegaremos lá.
No
escritório, qualquer gravata fora do lugar já pode ser motivo para desconfiança.
Um café na hora errada, um comentário no corredor. As instituições estão
corrompidas, elas fabricam mentes e produtos da mesma maneira: uniformes e
padronizados!
– Amjad Rasmi
Estamos
cansados de ouvir como devemos ser, mas não nos cansamos de nos perguntar o que
podemos ser! Quando falamos de uniformidade e padronização nós matamos a
potência do novo, perdemos o comum, onde as singularidades se articulam e
ficamos esperando as ordens do chefe. As empresas investem na ideia de novidade
e “último lançamento”, mas fazem isso não para nosso benefício. Os encontros
acontecem somente por diferença e experimentação, e podem ser facilmente
capturados pelo capital! Se formos todos iguais e mantidos cada um no seu
espaço, como isso se dará?
O que estamos buscando – o que conta no amor – são a produção de subjetividade e o encontro de singularidades, que compõem novos agrupamentos e constituem novas formas do comum” – Negri&Hardt, Bem Estar Comum, p. 211
Mas
o grau maior de como o amor pode ser corrompido é a ideia
de Nação. Vemos como o amor à pátria assumiu formas
tendenciosas no passado e hoje volta a se afirmar com força. O lema “Brasil,
ame-o ou deixe-o“, dos tempos da ditadura, não é nada inatual. Pelo
contrário, vemos como pessoas saindo na rua com camiseta da seleção brasileira é
apenas um dos sintomas de um fechamento para as diferenças. Um país com milhares
de quilômetros de extensão sendo tomado por um pensamento fascista que só pensa
em termos de amigo/inimigo. Um país que com o lema da pátria amada, com a
bandeira nas costas e o hino cantado com emoção, varre para debaixo do tapete
tudo que não seja apresentável nem digno de visibilidade.
O
que na verdade estamos criando é uma nação de idiotas que pensam as mesmas
coisas e querem impor este mesmo pensamento limitado para os outros. Como se
houvesse apenas um modo de ser brasileiro, um modo de amar o seu país, um modo
de lutar por ele. Ainda mais no Brasil onde é absolutamente impossível falar de
identidade nacional, de raça brasileira ou qualquer tentativa de unificação
neste sentido sem reconhecer que este sempre foi um projeto de poder para
oprimir as populações mais vulneráveis.
No encontro e singularidades desse amor, um novo agrupamento é criado marcado pela contínua metamorfose de cada singularidade no comum” – Negri&Hardt, Bem Estar Comum, p. 212
Neste
sentido precisamos pensar o amor como uma arma. Tanto para a constituição de
novos laços, mas também para resistir e desatar o que hoje está preso. O amor é
uma atividade que quando necessária resiste das mais variadas formas, ele não é
um dar a outra face.
Da
mesma forma que Deleuze e Guattari falaram do devir-vespa da orquídea e do
devir-orquídea da vespa, onde cada uma entrava em devir, mas sem deixar de se
relacionar e crescer no processo. Aqueles em maior vulnerabilidade são os que
mais têm a ganhar. Vítimas primeiras do capital, expropriados de seus próprios
corpos, de sua subjetividade, é o amor que torna comum este campo onde todos
estão e nos retira da miséria e da solidão. Se, infelizmente, nos unimos por
medo, sabemos que ao menos o único modo de crescer é por amor.

Mas
como falar de amor em um mundo tão cheio de maldade? É possível fundar uma
sociedade, ou um projeto constituinte, se somos maus por natureza? Ora, e quem
disse isso? A ideia de mal radical é antiga e perpassa o cristianismo (e a psicanálise) além de vários outros pensamentos com que
atualmente nos defrontamos. Mas a pergunta é mal formulada, não há um íntimo na
natureza humana, não há uma essência de maldade que resiste à civilização, às
leis, ao amor. Precisamos voltar a Espinosa e tratar dos afetos como linhas e
planos: uma ciência dos afetos.
Não
somos nem bons nem ruins, somos um corpo que é afetado, que ora aumenta sua
potência de pensar e agir, ora diminui. Estamos atentos para este corpo? Como
ele está no mundo? Que afetos circulam por ele? Esta pergunta é de extrema
importância porque estamos envenenados e aprendemos a amar de jeitos que nos
aprisionam. Mas se não somos nem bons nem ruins. O amor ama de modos errados por
pura ignorância, impotência e superstição. O mal é secundário e necessariamente
inferior, e ele pode e deve ser combatido (não contido, nem aceito). Em suma,
não há nada que o homem sábio pense menos que no mal, e sua filosofia é uma
filosofia para o amor!
O mal […] é o amor que se desencaminhou, o amor de tal maneira corrompido que obstrui o funcionamento do amor” – Negri&Hardt, Bem Estar Comum, p. 217
Sempre
se procura o que é melhor para si, mesmo que seja da maneira errada. Mesmo oressentido quer ser feliz! O desejo nunca se engana, ele pode
apenas ser pequeno demais para ver bem os caminhos que trilha. No amor, afeto e
intelecto estão unidos. Claro, não poderia ser diferente para nós! Esse é o
único caminho que conhecemos para sair da servidão!
A primeira pergunta a fazer ao se deparar com o mal é: que amor especificamente deu errado aqui? Qual a instância do comum foi corrompida? As pessoas estão profundamente viciadas no amor que dá errado e em formas corrompidas do comum. Não raro, infelizmente são estas a únicas expressões do amor e do comum que conhecem!” – Negri&Hardt, Bem Estar Comum, p. 218
Não
é à toa que Espinosa pensa remédios para os afetos! Afinal, os homens lutam por sua
servidão achando que estão lutando por sua liberdade. Às vezes, o amor toma
caminhos inesperados, fecham, constrangem, e impede de fazer novas conexões,
traçar linhas de fuga, encontrar outras formas de amar, viver e de se
recriar.
O
amor quer transbordar! Ele é o ritornelo que sempre se repete de maneira diferente! É isso
que tanto nos assusta, somos pequenos demais para deixar o amor passar, para
cantar sua melodia e nos deixar levar por suas possibilidades. O amor é
monstruoso porque ele não possui a cara bonitinha dos atores de filmes de
comédia romântica. Sua face nos é desconhecida, mas conhecemos sua força!
Estamos
neste campo de batalha, onde a multidão luta para se compor sem se homogeneizar,
onde as conexões se fazem na forma de um rizoma, e cada parte se liga com outras numa horizontalidade
inteligente. O amor é o motor ontológico que move estes agenciamentos.
Precisamos de consistência, para fazer passar o desejo, para girar cada vez mais
rápidos.
É
no amor que abrimos as identidades, permitimos outras formas do ser se
constituir sem modelos pré-determinados, sem formas apertadas e claustrofóbicas!
É no amor que a diferença se articula sem perder-se e sem limitar-se! Ele abre,
sem perder-se, ele ganha velocidade, sem desintegrar-se. É no amor, para
concluir, que nos tornamos nômades, parados ou em movimento! Só ele permite
abandonar o isolamento e compreender-se como elemento dentro da natureza,
abandonando ilusões de onipotência e encontrando o real, a imanência e a
produção contínua de vida.
O verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor” – Che Guevara
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